“Meu elemento: a vida
Sou elemento vivo, conectado as raízes do mundo
Gestado no útero da terra
Acolhido no ventre aquecido
Alcançado ao universo pelos braços da mãe que deixa seu filho crescer
Nutrido por toda a força necessária, pela abundância de sua natureza
Sou água que é sentimento fluindo, correndo nas veias do rio que percorre meu corpo
Sou ar que sopra em minha mente os pensamentos que desejo construir em futuros próximos como morada
Sou fogo que intui e vibra em motivações que me fazem expandir, habitar mundos dentro e fora de mim
Sou terra que se assegura do caminho, sente, concretiza minha ações por mais desafiadoras que pareçam
Sou filho da terra e grato pelo amparo
Sou filho do tempo e grato pela passagem que me permite cumprir
Sou filho do sonho e grato pela possibilidade de criar universos paralelos
Sou filho do vento que me leva onde jamais pensei que pudesse ir
Sou o relicário que guarda tudo que me foi ensinado e que acredita no compartilhar dos aprendizados” (PaTTi Cruz)
Reflexões a partir do texto:
Um diálogo do homem com a natureza esquecida
(Por PaTTi Cruz)
O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Peço permissão a Bandeira para oferecer ao homem o próprio homem, a partir da imagem que temos em seu poema. Pode parecer um tanto vil e agressivo falar assim deste ser, mas, será que nossa crítica não se encontra, justamente na veracidade do fato e por nos espelharmos nesta imagem que nos torna selvagens?
Pensar na natureza e relembrar a flora e a fauna e sua forma de sobrevivência onde alguns são levados a derrotar os outros apenas para se manterem na cadeia vital, faz tudo parecer um ato cruel, doloroso demais para ser visto. Mas, é tolerável a abundância da escassez da vida que ajudamos a construir como futuro? Cada vez mais nos distanciamos da natureza e passamos a ser representantes de uma nova categoria de “selvagens”.
Nos distanciamos quando não respeitamos seus elementos, não valorizamos , não criamos meios para que sua escassez não aconteça. Quando contribuímos para esvaziar nossos mares, rios, lagos. Quando poluímos o ar de forma a vulnerabilizar nossa respiração. Quando contaminamos a água a ponto de não podermos bebê-la diretamente sem passar por processos que alteram sua composição. Quando do fogo surge e de suas labaredas aparece a figura destruidora, revidando por todos os atos anteriores cometidos e que, portanto, transformam o clima, queimando lugares, onde existe o verde das plantas.
Secretamente, vejo o homem se encaminhando ao Poema, porque toma distancia da natureza a ponto suficiente para tornar-se selvagem. Vejo a natureza se distanciando do homem, por não saber mais como conviver sem sentir-se lesada pelas suas ações.
Ao pensar na terra, no solo, no barro, na mãe natureza, no chão que sustenta, que torna possível a existência e permanência em um lar, casa sagrada dentro do universo, encontro a possiblidade de um novo contato, de redimensionar o entendimento de quem somos e resgatar um pouco de nossas raízes e nossa humanidade. Pensar no barro como mediador, acolhedor é abrir um caminho de acesso ao inconsciente coletivo, dialogando com outros mundos antes de nós, criando um movimento que dignifique nossa estada no universo.
O barro contém em si todos os elementos da natureza, da força do fogo, ao sopro de vida do ar, da água que oferece sua consistência à sensação de estar novamente em contato com a mãe, em seu útero que protege, através dos grãos da terra.
Terra, Água, Ar e Fogo não são conceitos abstratos, são fatores materiais e forças vitais perceptíveis através dos nossos sentidos. Como fatores materiais, simbolizam os quatro estados da matéria. Segundo a física moderna, a terra é sólida, a água é líquida, o ar é gasoso, e o fogo é plasma ou energia irradiante. Representam também as necessidades fundamentais de qualquer organismo avançado. Esses elementos transcendem a mera química material, são também forças vitais que atuam diretamente no homem. Eis uma característica própria da cerâmica; o artista lida não somente com a matéria nos seus diversos estados e nas suas transformações químicas mas, lida também com energias vitais. (NAKANO, 1989, pp.67,69).
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a umidade que unifica-nos com este recurso. Nossas mãos penetram na sua viscosidade e deste interior modelam imagens, criam formas, nasce um novo personagem. O barro, o elemento terra refere-se à matéria do corpo, à força física, a realidade do aqui e agora do mundo material. Terra corresponde à função da Sensação. É a lida com o mundo sensível e concreto, isto é, a reação ativa e resistente. Nosso movimento com este elemento que compõe o barro pode nos oferecer a reflexão a partir de suas características: esforço, paciência, obstinação, prudência, rigidez, conservadorismo, concentração, concomitante a suas características a serem trabalhadas também se fazem presentes: imposição de sua razão, dúvida, negação, regras fixas, egoísmo, isolamento, lentidão.
É necessário acrescentar a humildade, etimologicamente ligada ao húmus, em direção ao qual a terra se inclina e do qual foi modelado o homem.
A terra é a substância universal, o caos primordial, a prima matéria separada das águas, segundo o Gênesis, levada à superfície das águas; coagulada pelos heróis míticos; matéria de que o Criador molda o homem. A terra é a virgem penetrada pela lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu.
A terra simboliza a função maternal: Tellus Mater. Oferece e retira a vida. Prostrando-se sobre o solo, Jó exclama: Nu saí do seio materno, nu para lá retornarei, identificando a terra-mãe com o colo materno. ( Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, in Dicionário de Símbolos -Compilação de Constantino K. Riemma)
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a vida que sopra e que também unifica-nos com este recurso. A reflexão está presente, os pensamentos fluem nas aragens e produzem as brisas que apresentam paisagens inimagináveis. O ar tem como características a função mental, a atuação através da comparação. Há neste elemento inteligência, reflexão, estudo, ciência, invenção; sutileza, sinceridade, reforma. Corresponde à função do Pensamento. A vida emocional no elemento Ar é a área mais vulnerável.
Ar produz, mobilidade, elasticidade de espírito, de caráter, impulsos vivos, impressionabilidade, intuição, gênio inventivo, reação viva, habilidade, sentimentos artísticos, liberalidade, sutileza, inquietação.
Positivamente o elemento tende ao equilíbrio, cooperação, espírito gregário, inteligência, rapidez, objetividade, idéias balanceadas. Negativamente: superficialidade, hiperatividade, nervosismo, dispersão.
O Ar é movimento e libertação. Representa o mundo sutil intermediário do céu e da terra, o mundo da expansão que é insuflado pelo sopro, necessário à subsistência dos seres.
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a generosidade da vitalidade que escorre pelas gotas que brotam deste recurso aquoso enquanto nossas mãos se conectam com sua plasticidade que transforma a forma e nos modela como se o próprio barro fôssemos. Na água presente no barro levamos e lavamos nossas emoções, purificamos os sentimentos, oferecemos forma ao que não era visível. A água é o princípio calmante, curativo e nutritivo. Neste elemento desenvolve-se psiquismo, vida emocional, sentimento, inspiração, imaginação, desejos, regeneração. Tendências positivas e naturais do elemento água (endo) quando em equilíbrio: compaixão, compreensão, sensibilidade, arte, romantismo, reserva. Tendências negativas quando em desequilíbrio (caráter): influenciabilidade, alucinações, auto-indulgência, fantasia, exagero dos sentimentos. Carência, absorvência, emoções à flor da pele, mágoa.
“Em especial, a água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assinala tanta substância! Traz para si tantas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a química dos poetas.” [BACHELARD, 2002].
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir o calor da vida, o quente corpo que abraça nossa alma.
“O fogo surge como última etapa do processo. Terminada a modelagem, ele é necessário para secar e endurecer o barro, no sol ou no forno. Alquímico, vai transformar o que era mole e úmido em duro e seco. Processo de transformação simbólica, já que o fogo é sinal de modificação na essência. Todas as civilizações tiveram cerimônias ritualísticas de transformação espiritual através do fogo.(ZALUAR, 1997, p.13).
O fogo é a vitalidade, atividade, demonstração, entusiasmo, vontade e o idealismo. Energia excitável e entusiástica que, através de sua luz, dá colorido ao mundo. Criatividade, iniciativa, liberdade, coragem e por vezes, egocentrismo. Sua função é Intuitiva. Positivamente o elemento fogo produz: coragem e auto-reconhecimento, visão, prestatividade, expressões criativas, força, ardor, intuição. Negativamente: auto-imposição, autoridade a qualquer custo, dissipação da vitalidade. Em excesso: inquietação, egoísmo, crueldade, desejos óbvios e imediatos, expectativas exageradas, impaciência. Pouco fogo: pessimismo, comodismo, passividade, pouco movimento.
“Na poética do fogo o movimento das forças é constante. Na lógica do tempo o fogo co-existe no ar, na terra, na água que principia o conteúdo da vida. A energia é brutal e leve, infernal e morna, aquece e acolhe os fluxos e desejos do sentindo puro da existência. Sob a pena de alastrar-se, concentra-se. As fagulhas rasgam o espaço e iluminam o todo. O fogo é a vida capturada em chamas, é a presença do sol nos braços das labaredas que se estendem buscando tocar o espaço. É nesta dança sagrada e alaranjada e na musicalidade do crepitar sereno das fagulhas que o universo absorve o aspecto intuitivo e denso da sobrevivência.”
(PaTTi Cruz)
Portanto, creio que ao tocar no barro nossas mãos nos tocam, profundamente, tocam o homem (ser humano) que fomos e ascende uma faísca brilhante do caminho para o qual podemos nos direcionar ao encontro do homem que desejamos ser. Se nossa crença nos levar de volta ao caminho de origem, quem sabe, possamos criar a passagem abaixo dos nossos pés, marcando o solo com uma nova trajetória. Quem sabe, contatando com o barro, possamos equilibrar os elementos dentro de nós e nos modelarmos a imagem e semelhança da natureza que tão sábia oferece tudo que precisamos e que tão erroneamente não conseguimos valorizar por que não vemos a abundância como algo a ser preservado, vemos apenas, como algo a ser consumido. Não percebemos que o que retiramos dela precisa ser recolocado, nutrido, para que novas vidas possam futuramente usufruir com mais consciência do que nós hoje temos.
Jung escreve: “Nós não somos os criadores de nossas idéias, mas apenas seus porta vozes; são elas que nos dão forma [...] cada um de nós carrega a tocha que no fim do caminho outro levará”. (Jung apud Gouveia, 1990, p.16).
Referencias Bibliográficas
ALESSANDRINI, Cristina Dias. Análise Microgenética da Oficina Criativa – Projeto de Modelagem em Argila. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1989.
São Paulo; Editora Cultrix, 1999.
______________________. Sol da Terra. O uso do Barro em psicoterapia.
São Paulo: Sumus Editorial, 1990.
JUNG, C. Gustav.A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.
_____________ .Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1962.
_____________.O Homem e seus Símbolos.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
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