(Por PaTTi Cruz)
Vivemos em uma sociedade onde a força dos atributos que cada indivíduo possui determina seu envolvimento ou afastamento com seus membros. Na coletividade vivem aqueles que podem prover a sociedade com seu trabalho e colaboração enquanto cidadãos, pessoas estas capacitadas e qualificadas em algo que injetam na esfera econômica sua mão-de-obra. É evidente que se está relacionando aqui indivíduos que de alguma forma são eleitos como qualificados por algum grupo de outros sujeitos que declaram quem e porquê estão aptos a fazer parte deste contexto de pessoas que contribuem para a promoção desta sociedade. A característica de pertencer é oportunizada para muitos, mas não para todos. Eis o ponto em questão para a reflexão que este artigo se propõe, refiro-me a esta parcela que está à margem do contexto social, por motivos óbvios uma vez, que se considerarmos as qualidades produtivas dos membros que compõe a sociedade teremos os aptos e em contrapartida logo adiante estão aqueles que distante dela, pela percepção apenas de suas limitações, ficam a deriva na periferia do mundo.
Nos perguntamos então porquê esta distinção? O que torna uns melhores que outros e melhores em que exatamente? Deixariam estes sujeitos, por terem suas limitações, de ser cidadãos e de pertencerem à sociedade? A questão vai ainda mais a fundo, considera-se limitação somente o que é visível, apresentado no corpo do sujeito como uma marca? Se formos pensar a respeito de limitações, poderíamos nos perceber como indivíduos que têm também em alguma área física ou não dificuldades e ainda assim nos consideramos dignos de estar neste contexto. O que nos dá este poder de escolha, de eleger quem é digno de estar no centro do mundo e quem deve estar à margem deste? Porque nosso olhar lê assim as entrelinhas e constrói este mundo? O que nos direciona para isto é nossa história de vida, aquilo que escutamos e assimilamos ao longo do tempo? Neste seguimento de construção da leitura de mundo e pessoas que o compõe, e de perceber o outro como alguém inapto ou apto a pertencer ao meio por apresentar sinais que o tornam diferentes da maioria levando a organização de uma auto-imagem ou identidade pessoal distorcida, temos dois autores que nos revelam conceitos e percepções de como e porque a sociedade agrega ou rejeita seus membros. Serge Moscovici, que remete ao pensar sobre as Representações Sociais e Erving Goffman que aborda sobre a construção dos Estigmas.
Antes de destacar as idéias destes autores quero propor uma reflexão que talvez nos permita validar as justificadas percepções sobre o mundo e o outro. Analisando o contexto histórico que estrutura o meio social podemos citar na origem dos povos a formação de castas que ditaram as normas para seus subordinados. Há na Antigüidade, assim como nos tempos atuais a sustentação de uma característica que é intrínseca a estes sujeitos que ocupam nas castas o seu ponto mais alto: a vaidade. A vaidade que segundo seu significado literal é a qualidade do que é vão; desejo imoderado e infundado de merecer a admiração dos outros; vanglória, ostentação, futilidade (Dicionário Michaelis). Mas, que independente de sua definição, produz uma sensação de satisfação por parte daqueles que têm nas mãos aquilo que a promove: o poder. Ainda que uma sensação momentânea parece alimentar o ego daqueles que a possuem, pois sua definição deixa claro ser esta uma futilidade e algo que é vão, uma vez que pela lógica social, toda vez que aparecer outro sujeito que detenha mais poder aniquilará tal sensação que era pertinente ao que foi “dominado”. Passando então ao novo detentor do poder a vaidade de ser aquele que determina as regras. Estas características e sensações de vaidade e poder, aparecem com toda a força na estruturação do meio social por toda a trajetória humana.
Retomando o sistema de classes desde os tempos mais remotos, temos a organização da sociedade constituída através da promoção ou destituição de seus membros. Na origem dos povos mediterrâneos fora construído o Templum, um local destinado às previsões climáticas que regiam o movimento daquele povo em sua organização econômica, previsões estas feitas através de análises e estudos secretos de Matemática, Física e Astronomia, realizados por indivíduos qualificados para tal fim. Um exemplo de detenção de poder, o poder do conhecimento que ficava confinado, tendo alcance apenas dos eleitos. No princípio, era apenas um quadrilátero projetado no chão, depois ergueram-se paredes a sua volta e um teto fora projetado: o Templum Moderno, onde os sacerdotes continuaram seus estudos e análises sobre os acontecimentos ocultos aos “comuns dos mortais”. O termo Templum correspondia a fanun. Parte da população, os incrédulos e ignorantes, não podia entrar no fanun e por isso foi construída à porta do Templum uma espécie de varanda, onde ficavam os não dignos de entrar. A esta parte na entrada do Templum deu-se o nome de Profanun, de onde originou-se o nome Profano, para aqueles que não se enquadram no que é Sagrado. O termo Sagrado do latim Sacer (de Sacros) proveio do Indo-Europeu, cuja raiz significava, como em Sânscrito, Lugar Demarcado, Delimitado, que era para aqueles que haviam sido escolhidos como os melhores, dignos de pertencer àquele local.
Em uma relação muito próxima com a designação de lugar, o termo Estigma originou-se em um período cujo sentido servia como referência para sinais corporais, que evidenciava algo fora do comum, anormal. Estabelecido pelos gregos, conforme relata Goffman, tais sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e informavam que o portador era um escravo, criminoso ou traidor, uma pessoa marcada que devia ser evitada principalmente em lugares públicos. Na Era Cristã foram atribuídos dois sentidos ao termo: um referindo-se a sinais corporais de graça divina que tinham a forma de flores em erupção sobre a pele; outro uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico.
Assim, a sociedade vem ao longo do tempo estabelecendo as determinações de lugar de pertencer ao indivíduo, categorizando-o, classificando-o e justificando sua forma digna ou não de fazer parte deste contexto. O que não podemos esquecer é que nós também compomos a sociedade, esta mesma sociedade que criticamos e tornamos inválida na medida em que nada fazemos para modificar aquilo que, parecendo até contraditório, reivindicamos. Uma sociedade engessada pelo tempo e condenada a estar cada vez mais aniquilada pela prepotência de uns em detrimento das supostas incapacidades e limitações de outros. O que isto revela é que equivocadamente, não contatamos com pessoas, mas sim com seus estereótipos, aquilo que está em evidência para que nosso olhar crítico perceba. De acordo com o que Goffman aborda, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e seus atributos, a sua “identidade social”. Na maioria das vezes nem se quer supomos que talvez, o que estamos observando não seja tudo, isto é, nem sempre oportunizamos ao outro que se manifeste em sua totalidade de ser. Estas “provas de capacidades e atributos” que muitas vezes não permitimos ao outro fazer revelaria sua identidade social real. Com este ímpeto julgador, providenciamos uma dualidade de existência: a imagem de um indivíduo que apresentará atitudes a partir das evidências de seus atributos de acordo com as nossas expectativas e a imagem que desconheceremos se não o oportunizamos apresentar, e que ainda assim existe e que representaria de fato suas reais capacidades. Pois, é a partir do que observamos em relação ao outro que criamos nossos mitos e estigmatizamos pessoas, baseando-nos em preconcepções transformamos suas imagens tornado-as distorcidas de pessoas desacreditadas. Através destes pré-conceitos, nesta nossa antecipação das capacidades e incapacidades do indivíduo elaboramos e fortalecemos nossas representatividades sociais, como faz referência Moscovici, quando cita que as Representações Sociais são obtidas através do processo pelo qual o sujeito atribui sentido a um dado objeto, a partir de suas experiências e relações. Acredito que ao longo dos tempos fomos formando idéias equivocadas a respeito do outro que muitas vezes como nós, têm suas limitações. Contudo, o questionamento é: o que me faz ver o outro tão diferente de mim, se em suas diferenças encontram-se também similaridades relativas ao ser enquanto humano, e tão humano quanto eu? O que me faz crer que a diferença do outro é maior e mais comprometedora que a minha, que minhas dificuldades são mais leves e toleráveis, e que tenho eu mais valia que meu semelhante? Ao estabelecer uma relação com o espaço destinado ao ensino, percebo o quanto isto também se reflete. A Escola enquanto instituição ideológica colabora de maneira efetiva para a consolidação das diferenças que a sociedade como um todo vem estabelecendo, ou dependendo de sua filosofia trabalha no sentido de desmistificar os rótulos e pressões das marcas fixadas pela sociedade que provoca o preconceito, a rejeição e a exclusão social.
É necessário abordar um aspecto muito importante e porque não dizer, determinante da manutenção de um separatismo entre as Escolas Especiais e as Escolas Comuns, como assim chamarei aqui as Escolas Regulares: o sistema educacional e a relação de poder. A partir da aceitação ou não de determinados alunos, as Escolas acabam de certa forma categorizando-os entre sujeitos comuns e incomuns, isto é, os incomuns são aqueles que estão fora do que é convencional, fora de um padrão tido como normal. Não muito diferente do que acontecia na organização da sociedade e a concessão do acesso ao ensino na origem dos povos do mediterrâneo, nossas Escolas por longo período puderam exercer sua função de apoderamento nesta relação: para quem destinar a educação nas Escolas Comuns? Quem eram os Sagrados que poderiam participar do espaço delimitado ao alcance do saber mais qualificado e quem deveria ficar na “varanda”, quem eram os Profanos, indignos de pertencer àquele meio, por serem desacreditados de suas potencialidades? Maneira pela qual as Escolas Especiais concentraram uma forte cultura em nosso meio propondo um ensino diferenciado para pessoas diferentes. Neste processo, a trajetória extensa do sistema de ensino nos apresentou muitos sentidos para o entendimento das necessidades das pessoas com deficiências. Em larga escala as Escolas, tidas antigamente como estrutura de Instituição (até aproximadamente 1948), “defendia” seus integrantes a base de um segregamento que em sua função teórica servia como que para protegê-los, pela sua falta de habilidade de sobreviver ao meio e lutar por suas conquistas. Era um espaço assistencialista onde os profissionais serviam para serem seus cuidadores, mantendo a tranqüilidade das famílias pela guarda temporária de seus filhos. Por volta de 1970, estas Escolas passaram para um movimento de espaço Integrativo e Adaptador, onde se procurava de alguma forma agregar ao meio social as pessoas diferentes. A partir do ano 2000, aproximadamente, o sistema de ensino buscou um espaço mais Inclusivo e Transformador, muito pela necessidade de um olhar diferenciado sobre o sujeito portador de deficiência, mas muito também, infelizmente, movido pela determinação da lei que outorga para estas pessoas o direito de estarem inseridas, preferencialmente, em Escolas Comuns (Regulares).
Um fato se debruça sobre nossa ação pedagógica, o que e como nós educadores trabalhamos para apresentar o portador de deficiência como alguém capaz. São nossas crenças em suas potencialidades que podem despertar a sociedade para que modifique seu olhar sobre aquele que é diferente. Se acreditamos que ser diferente é algo comum, e, portanto não há o que nos impeça de convivermos no mesmo espaço social, o portador de deficiência é alguém apenas diferente tanto quanto nós o somos diante uns dos outros. Não há, portanto nenhuma indignidade de pertencer ao contexto social que é comum a todos, até porque esta mesma pessoa portadora de deficiência não foi concebida fora dele para em algum momento não pertencer a ele de fato. Em minha prática pedagógica, aprendi que para trabalhar com pessoas portadoras de deficiência é primeiro preciso aprender a trabalhar com pessoas. Isto é, é preciso perceber o aluno como sujeito em sua totalidade de ser, em suas características comuns inerentes ao ser humano: saberes, desejos, sentimentos, sensações, humor, temperamento, personalidade e ter claro que suas diferenças são apenas diferenças que não invalidam todas as características anteriores. Este sujeito é alguém comum e que tem assim como limitações (que fazem parte da constituição do humano), potencialidades e que é a partir delas que elaboramos nossas propostas em sala de aula. O direcionamento do olhar ao outro é um caminho de percepção de si mesmo, uma vez que se acreditamos que nossa leitura de mundo está diretamente relacionada com nossa cultura, como sugere Moscovici, isto é, com tudo aquilo que absorvemos desde os primórdios de nossa existência, como herança das crenças de nossos antepassados remotos e recentes, é na construção de nossas ações como processo de formação de nosso meio que nos inserimos e inserimos o outro no contexto em que vivemos, ou o excluímos pelo fato de não aceitarmos o sentido de pertencer do outro por critérios que elaboramos a partir de nossos ideais. O olhar que temos sobre o outro é um reflexo de nossa leitura de mundo e de tudo que acreditamos. Contudo, se somos sujeitos que constroem a história e não nos sentimos passivos em relação a ela, com nossas ações alimentamos a cristalização das incapacidades. Com nossa consciência ou inconsciência estabelecemos parâmetros de classificação e critérios para aceitação de indivíduos ao nosso meio. Talvez se substituíssemos nossa idéia de incapacidade pela noção de possibilidade, reduzíssemos consideravelmente as fronteiras que nos afastam e evidenciam a beleza dos linces e a degradação dos patinhos feios. Cabe a cada um de nós que deseja um meio social que não classifique seus indivíduos pelas suas diferenças, propor a queda das Dinastias dos Sagrados e dos Profanos e abrir um Templum Escola que seja comum a todos, sem ter varanda alguma a sua volta, para que justamente a partir das diferenças possa se estabelecer de fato um pacto social com a Construção da Cidadania em uma sociedade em que as capacidades possam se destacar.
Bibliografia
GOFFMAN, Erving – Estigma: Notas sobre a Manipulação de Identidade Deteriorada Editora Guanabara 4ªedição
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