(Por PaTTi Cruz )
Do cotidiano ao obsoleto mundo que nos percorre, os devaneios de uma sensibilidade emergida dos sulcos da alma seria, talvez, a alternativa mais breve de transcender a desumanidade. Os espectros de ser e estar no mundo que compartilham da boa fé e da boa vontade de inspirar-se na vida para dela fazer caminho, nos configura um outro eu que de fato não somos. Nem tampouco curvamo-nos a procura de sua essência em sua tenra terra que nos acolhe.
O fato de dilacerarmo-nos em sentimentos e esvoaçarmos em asas de borboletas que tem curta temporada de vida, faz com que apressemo-nos no desbravamento do mundo sem se quer nos integrarmos com o teor de nossa existência e a partir destas atitudes passamos apenas a subsistir. Esta força de persistência de permanência no mundo nos torna frágeis e vulneráveis aos sentidos em sua origem real. Ou seja, vivemos em um espaço e tempo e definimos a vida pela circunstância em que nos é apresentada num dado momento. É descabido pensar por onde circula a sensibilidade da admiração? Ou mais descabido seria pensar se há espaço para ela quando neste contexto estamos aptos a realidade que nos é colocada como cruel e que a luta é que faz parte do existir?
Diante dos fatos, cremos que não há lugar de onde falemos que apareça a possibilidade da sensibilidade, então, emergir. Não há caminho por onde ela possa surgir, não há fenda por onde sua luz possa penetrar. Há que se buscar um espaço para a tomada de consciência sem que se perca a sensibilidade e ainda, que se procure por ela nas mínimas coisas que a vida nos propõe. Não nos serve de pensar que aqui se considera a idéia de ir contra, deliberadamente, a realidade em que vivemos, mas ao contrário, a partir dela poder realçar as nuances do que é significativamente, manifesto na arte de existir. Não se deseja um mundo onde não tenha razão, mas também é preciso um mundo onde os sentidos tenham sentido e onde as sensações componham o homem em toda a sua natureza.
No universo do sentir, onde as artes têm uma colocação destacada, o homem vive por assim dizer, sua mais autêntica existência, convivendo pacificamente entre a consciência de sua observação e atribuição de sentidos e sua força imagética que alimenta a natureza da alma. A arte pode ter muitas conotações e dentre elas alguma que explore o caráter estético, mas não é esta arte que tornamos parte deste momento. Sabe-se da arte como forma de linguagem e expressividade e é justamente neste alicerce que fundamento e sacralizo sua importância. É neste olhar de contemplação onde se misturam obra e criador que integram-se e interagem na cumplicidade suprema e que ao mesmo tempo revelam e secretam as emoções, que expande-se a evolução da existência permeada pela sensibilidade. Nesta tênue fronteira onde o sol se põe e a lua nasce para a noite, em um encontro mágico em frações de segundos é que o mesmo apaixonamento entre autor e obra ocorre, substancialmente. É como se observássemos por um instante as raízes de uma árvore calcadas na terra de onde se nutrem para manter a espontaneidade da beleza de suas folhas e quem sabe frutos....e logo depois, em um instante seguinte, passássemos a admirar nestas raízes a história da completude desta árvore que não impõe limites entre o solo e o ápice dos galhos que aproximam-se do céu. É nas raízes onde sua história avança para a liberdade, onde seus braços buscam o alcance do ar, da vida à fora e se expande em beleza a ser compartilhada com o mundo que a totalidade da vida e da arte comungam.
“A criação está relacionada com a imaginação.
O ato criador sempre foi para mim algo transcendente,
algo que leva para além da liberdade através da necessidade.
Em certo sentido, se poderia afirmar que o amor à criação é desamor ao ‘mundo’,
impossibilidade de permanecer nos limites deste ‘mundo’.
Por ele, na atividade criadora existe um momento escatológico.
O ato criador é a vinda do fim deste mundo e o começo de outro mundo.”
Nikolay Alexandrovich Berdiaev,
“Autobiografia Espiritual”, 1957, p. 206
Considerando os aspectos da vida cotidiana, onde a ciência tem o destino de comprovações e a palavra final, o caminho abrangente da arte persegue o rumo oposto segundo certas concepções. Mas, é necessário relembrar que a arte fez parte de muitas sentenças de partidários do cientificismo. Freud, Nise da Silveira, Jung e outros deixaram-se seduzir pelo universo da arte em suas sessões e foram vencidos pelas possibilidades oferecidas através do conteúdo inebriante e suas provocações que despertavam entendimentos a respeito do paciente ou cliente, concatenando neste instante o racional e emocional do sentido. Portanto, não há porque nos rendermos as contestações quando os fatos são consistentes. Existe na arte uma força de manifestação genuína e inerente ao ser, onde a essência humana se clarifica e transborda de sentido. No mesmo espaço há lugar para a sustentação da razão e da emoção, em ritmos que se complementam harmonizando os conteúdos internos do ser em uma melodia uníssona. Criar é uma necessidade do homem na busca de uma evolução contínua. É nesta celebração de idéias e sentimentos que infunde-se o respeito do homem pela vida e vice-versa. Assim a análise da arte e sua totalidade na vida ou da vida totalizada na arte, em comunhão com a essência do homem, não pode ou deve ser apreciada de maneira desarticulada do contexto da cientificidade. A neutralidade ou contrariedade da ciência nos conteúdos julgados abstratos da arte como fator que também é composto de cientificismo, foge da crença de que o homem não é só organismo, mas o é também sentido e significados em mente e psiquismo. A arte completa o homem, tanto quanto a ciência faz evoluir a vida. Ainda mais além, creia-se que a arte da evolução está no olhar científico que se permite vislumbrar que a ciência é arte, e a arte está agregada suas forças, à realidade congênita do espaço e tempo, assim como transita na orla do que afasta-se do contexto comum, mas nem por isso deixa de ser arte ou de fazer parte do mundo.
Olhar uma obra tem o sentido de perceber suas formas. Observar uma obra tem o sentido de analisar e julgar esteticamente, ainda que não seja nossa qualificação para tal. Interagir com a obra, comunicar-se com ela, estabelecer uma relação, eis o verdadeiro sentido de sua existência. Para isso, é preciso estar aberto e alheio às referências do bem e do mal, do certo e do errado, dos extremos e opostos sensos críticos. É preciso ser leal aos sentidos que nos facultam ser e poder experimentar a vida. Esta magnitude de homem que admira e aprecia o mundo e suas formas de arte é que nos possibilita não apenas ser testemunhas oculares, mas ser cúmplices dos movimentos, tensões, ritmos e musicalidade contidos na obra.
Creio, então, que se nos curvarmos um pouco mais, despidos desta desmesura ansiosa da sobrevivência, e nos aninharmos nos poros da terra, talvez assim alimentemos nossa alma. Talvez possamos refletir nossa imagem nas águas profundas que matam a sede das raízes e nelas encontremos nossa história e nossa essência, podendo fazer da vida, apenas vida em sua sutil forma de revelar o mundo e suas belas artes a serem apreciadas, sem julgamentos.
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