Sacralizada Arte da
Sensibilidade
Profª Patricia Cruz - Pedagoga Especial,
Esp.Arteterapia, Consultora de Desenvolvimento Humano e Criatividade,
Coordenadora Pedagógica e Docente do Curso de Pós Graduação Lato Sensu de
Arteterapia - Centrarte/RS, Contadora de Histórias, Espec.LIBRAS.
Do cotidiano ao obsoleto mundo que nos percorre, os devaneios de uma
sensibilidade emergida dos sulcos da alma seria, talvez, a alternativa mais
breve de transcender a desumanidade. Os espectros de ser e estar no mundo que
compartilham da boa fé e da boa vontade de inspirar-se na vida para dela fazer
caminho, nos configura um outro eu
que de fato não somos. Nem tampouco curvamo-nos a procura de sua essência em
tenra terra que nos acolhe.
O fato de dilacerarmo-nos em sentimentos e esvoaçarmos em asas de
borboletas que tem curta temporada de vida, faz com que apressemo-nos no
desbravamento do mundo sem se quer nos integrarmos com o teor de nossa
existência e a partir destas atitudes passamos apenas a subsistir. Esta força
de persistência de permanência no mundo, nos torna frágeis e vulneráveis aos
sentidos em sua origem real. Ou seja, vivemos em um espaço e tempo e definimos
a vida pela circunstância em que nos é apresentada num dado momento. É
descabido pensar por onde circula a sensibilidade da admiração? Ou mais
descabido seria pensar se há espaço para ela quando neste contexto estamos
aptos a realidade que nos é colocada como cruel e que a luta é que faz parte do
existir?
Diante dos fatos, cremos que não há lugar de onde falemos que apareça a
possibilidade da sensibilidade, então, emergir. Não há caminho por onde ela
possa surgir, não há fenda por onde sua luz possa penetrar. Há que se buscar um
espaço para a tomada de consciência sem que se perca a sensibilidade e ainda,
que se procure por ela nas mínimas coisas que a vida nos propõe. Não nos serve
de pensar que aqui se considera a idéia de ir contra, deliberadamente, a
realidade em que vivemos, mas ao contrário, a partir dela poder realçar as
nuances do que é significativamente, manifesto na arte de existir. Não se
deseja um mundo onde não tenha razão, mas também é preciso um mundo onde os
sentidos tenham sentido e onde as
sensações componham o homem em toda a sua natureza.
No universo do sentir, onde as artes têm uma colocação destacada, o homem
vive por assim dizer, sua mais autêntica existência, convivendo pacificamente
entre a consciência de sua observação e atribuição de sentidos e sua força
imagética que alimenta a natureza da alma. A arte pode ter muitas conotações e
dentre elas alguma que explore o caráter estético, mas não é esta arte que
tornamos parte deste momento. Sabe-se da arte como forma de linguagem e
expressividade, é justamente neste alicerce que fundamento e sacralizo sua
importância. É neste olhar de contemplação onde se misturam obra e criador que
integram-se e interagem na cumplicidade suprema e que ao mesmo tempo revelam e
secretam as emoções, que expande-se a evolução da existência permeada pela
sensibilidade. Nesta tênue fronteira onde o sol se põe e, a lua nasce para a
noite, em um encontro mágico em frações de segundos é que o mesmo apaixonamento
entre autor e obra ocorre, substancialmente. É como se observássemos por um
instante as raízes de uma árvore calcadas na terra de onde se nutrem para
manter a espontaneidade da beleza de suas folhas e quem sabe frutos....e logo
depois, em um instante seguinte, passássemos a admirar nestas raízes a história
da completude desta árvore que não impõe limites entre o solo e o ápice dos
galhos que aproximam-se do céu. É nas raízes onde sua história avança para a
liberdade, onde seus braços buscam o alcance do ar, da vida à fora e se expande
em beleza a ser compartilhada com o mundo que a totalidade da vida e da arte
comungam.
“A criação está relacionada com a
imaginação.
O ato criador sempre foi para mim algo transcendente,
algo que leva para além da liberdade através da necessidade.
Em certo sentido, se poderia afirmar que o amor à criação é desamor ao ‘mundo’,
impossibilidade de permanecer nos limites deste ‘mundo’.
Por ele, na atividade criadora existe um momento escatológico.
O ato criador é a vinda do fim deste mundo e o começo de outro mundo.”
Nikolay Alexandrovich Berdiaev,
“Autobiografia Espiritual”, 1957, p. 206
O ato criador sempre foi para mim algo transcendente,
algo que leva para além da liberdade através da necessidade.
Em certo sentido, se poderia afirmar que o amor à criação é desamor ao ‘mundo’,
impossibilidade de permanecer nos limites deste ‘mundo’.
Por ele, na atividade criadora existe um momento escatológico.
O ato criador é a vinda do fim deste mundo e o começo de outro mundo.”
Nikolay Alexandrovich Berdiaev,
“Autobiografia Espiritual”, 1957, p. 206
Considerando os aspectos da vida cotidiana, onde a ciência tem o destino
de comprovações e a palavra final, o caminho abrangente da arte persegue o rumo
oposto segundo certas concepções. Mas, é necessário relembrar que a arte fez
parte de muitas sentenças de partidários do cientificismo. Freud, Nise da Silveira,
Jung e outros deixaram-se seduzir pelo universo da arte em suas sessões e foram
vencidos pelas possibilidades oferecidas através do conteúdo inebriante e suas
provocações que despertavam entendimentos a respeito do paciente ou cliente,
concatenando neste instante o racional e emocional do sentido. Portanto, não há
porque nos rendermos as contestações quando os fatos são consistentes. Existe
na arte uma força de manifestação genuína e inerente ao ser, onde a essência
humana se clarifica e transborda de sentido. No mesmo espaço há lugar para a
sustentação da razão e da emoção, em ritmos que se complementam harmonizando os
conteúdos internos do ser em uma melodia uníssona. Criar é uma necessidade do
homem na busca de uma evolução contínua. É nesta celebração de idéias e
sentimentos que se infunde o respeito do homem pela vida e vice-versa. Assim, a
análise da arte e sua totalidade na vida ou da vida totalizada na arte, em
comunhão com a essência do homem, não pode ou deve ser apreciada de maneira
desarticulada do contexto da cientificidade. A neutralidade ou contrariedade da
ciência nos conteúdos julgados abstratos da arte como fator que também é
composto de cientificismo foge da crença de que o homem não é só organismo, mas
o é também sentido e significados em mente e psiquismo. A arte completa o homem,
tanto quanto a ciência faz evoluir a vida. Ainda mais além, creia-se que a arte
da evolução está no olhar científico que se permite vislumbrar que a ciência é
arte, e a arte está agregada as suas forças, à realidade congênita do espaço e
tempo, assim como transita na orla do que afasta-se do contexto comum, mas nem
por isso deixa de ser arte ou de fazer parte do mundo.
Olhar uma obra tem o sentido de perceber suas formas. Observar uma obra
tem o sentido de analisar e julgar esteticamente, ainda que não seja nossa
qualificação para tal. Interagir com
a obra, comunicar-se com ela, estabelecer uma relação, eis o
verdadeiro sentido de sua existência. Para isso, é preciso estar aberto e
alheio às referências do bem e do mal, do certo e do errado, dos extremos e
opostos sensos críticos. É preciso ser leal aos sentidos que nos facultam ser e poder experimentar a vida. Esta magnitude de homem que admira e
aprecia o mundo e suas formas de arte é que nos possibilita não apenas ser
testemunhas oculares, mas sermos cúmplices dos movimentos, tensões, ritmos e
musicalidade, contidos na obra.
Creio, então, que se nos curvarmos
um pouco mais, despidos desta desmesura ansiosa da sobrevivência, e nos
aninharmos nos poros da terra, talvez assim alimentemos nossa alma. Talvez,
possamos refletir nossa imagem nas águas profundas que matam a sede das raízes
e nelas encontremos nossa história e nossa essência, podendo fazer da vida,
apenas vida em sua sutil forma de revelar o mundo e suas belas artes a serem
apreciadas, sem julgamentos.
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