sábado, 1 de junho de 2013

A CORPOREIDADE E AS DIMENSÕES HUMANAS

TEXTO 3  
A CORPOREIDADE E AS DIMENSÕES HUMANAS[1]

Marta Genú. Drª. UEPA


A corporeidade é um conceito e um fenômeno. Conceito porque traduz epistemologicamente o evento do sujeito histórico. Fenômeno porque caracteriza a ação humana no contexto social. Como fenômeno e evento social que o sujeito constrói na relação com o meio em que vive, envolve as dimensões humanas. Os aspectos humanos desenvolvidos durante o processo de maturação (biológico) e socialização (cultura) constituem as dimensões humanas nomeadas como social, política, emocional, biológica e cultural.
A relação estabelecida entre a corporeidade e as expressões do sujeito implica em vivências no meio sociocultural que resultam no desenvolvimento dos domínios do comportamento referentes aos aspectos cognitivos e sócio-afetivos. A análise do fenômeno da corporeidade perpassa pela compreensão de conceitos subjacentes, entre eles: corpo, consciência corporal e omnilateralidade.
Há representações de corpo nas diferentes culturas e momentos históricos. Da ação motora autômata e da consciente, do corpo como instrumento de trabalho. Na antiguidade, os gregos buscavam a harmonia entre corpo e mente com atividades artísticas e atléticas. Com a Modernidade há um privilégio do reflexivo, e o ativo é tido como menos importante. Portanto, há uma segmentação entre corpo e alma, o corpo é cindido.
Descartes radicalizou a separação corpo e alma para livrar a ciência das amarras da igreja (ESPÍRITO SANTO: 1998, p. 104). O dualismo cartesiano vem com uma intenção: se por um lado o que é materializado pode ser comprovado, toda a realidade é explicável e tem um funcionamento linear, mecânico, por outro lado o que abstrato, subjetivo e relativo à alma cabe a igreja.
Como conseqüência desse processo de modernização o homem é materializado em sua imagem, trato e existência.  A maquinização dos corpos é superdimensionada pelo contexto social, pela indústria cultural e pela mercadorização dos corpos, que industrializados se tornam corpo-objeto. 
A Motricidade Humana concebe o homem em todas as suas dimensões e na sua singularidade, e tem como princípio o transcender[2]. O que está embutido na nomenclatura é o movimento humano histórico, cultural, que através da consciência corporal e do movimento intencional e não alienado, constrói a análise, a crítica, a cidadania.
As situações vivenciais, quando aprendizagem, constroem a corporeidade do sujeito. Corporeidade é a história de vida, a experiência do corpo vivido expressa pela motricidade, conjunto de ações intencionais ou motríceas e que se faz no ser sendo, isto é, na medida em que se constrói história e cultura e dessa forma, o sujeito se apropria da realidade, distanciando-se da objetificação de si, por meio da consciência corporal. A consciência corporal se traduz como o conjunto de manifestações corporais estabelecidas entre os homens e o meio.
A aprendizagem pela corporeidade possibilita a problematização da realidade a partir do movimento e do corpo. Os conceitos (cultura, tempo, espaço, trabalho, lazer[3]) são trabalhados na descodificação[4] (ARAGÃO, 2004, 2005; FREIRE, 1974, 1981) da realidade pelo corpo. O movimento é o movimento do cotidiano que constrói conhecimento e consciência pela apropriação da realidade, no processo da consciência corporal (MELO, 2005).
É na relação com o meio, e pelo movimento intencional, que as estruturas psico-cognitivas fixam-se e liberam outras. Nessa sucessão motrícea, o organismo se desenvolve. Então, a aquisição da linguagem implica a maturação do sistema nervoso, a integração num grupo social e a motivação afetiva. Como é próprio de todo sistema auto-organizativo, a linguagem resultante de um amadurecimento cinestésico amplia, por sua vez, a consciência.
A consciência é um campo psíquico que reúne funções e que podem resultar em atos, se faz em atos de percepção, imaginação, volição, especulação, paixão, com os quais dirigi-se para alguma coisa,  a consciência é consciência de alguma coisa, visa algo e portanto é intencional. O processo de conscientização se dá no espaço relacional e se constitui na ação sobre o meio.
A consciência corpórea, como constituinte do processo de conscientização, portanto de construção de identidade, contribui para o autoconhecimento e para a compreensão do sujeito construído na interação, estabelecendo, via movimento experimentado/vivido, correlações cognitivas. É no fluxo da ação-cognição que se dá à formação de "corpo inteiro".
Isto, em decorrência da impossibilidade de decompor uma percepção, fazendo dela uma reunião de partes ou sensações (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 46), assim, a consciência corpórea se constitui nesse fluir do sensitivo para o cognitivo em faces de um mesmo ato, em vivências únicas. O processo perceptivo da consciência corpórea tem seu correspondente na fase subjetiva da consciência.
A consciência corpórea também é a percepção do entorno, da realidade, com a ajuda do corpo. “Perceber é tornar presente qualquer coisa com a ajuda do corpo” (MERLEAU-PONTY apud MANUEL SÉRGIO 1994, p. 28), e com a ajuda da memória, evocando conceitos subsunçores (Um subsunçor é um conceito, uma idéia, uma proposição já existente na estrutura cognitiva do aprendiz que serve de ‘ancoradouro’ a uma nova informação, permitindo ao indivíduo atribuir-lhe significado.) para a compreensão e significação do que está sendo percebido.
Para além do domínio corporal, a consciência corpórea é formada no domínio cognitivo, porque a percepção do mundo ocorre pela sensibilidade, pelo campo do sentir, quando o sujeito incorpora o que percebe e opera no campo cognitivo, desenvolvendo o processo de conscientização também via consciência perceptiva ou corpórea. Trabalhar a consciência sinaliza para a unicidade humana na dimensão ou no “double face” corpo/mente.
Segundo Melo a noção de consciência corpórea é complexa porque traz em si aspectos sociais, simbólicos e cinestésicos. Melo propõe refletir sobre as relações estabelecidas entre a existência corporal e o mundo, em que perpassam a aceitação própria do corpo a partir das imagens impressas, nesse corpo, pela sociedade (GONZÁLEZ & FENSTERSEIFER, 2005, p. 175).
Toda consciência é corpórea, a consciência é a sincronização do sujeito (como diz Elenor Kunz). Quando digo consciência corpórea, me refiro a “eu sou corpo”, portanto há um processo de conscientização, via percepção corpórea, cognitiva, afetiva, que ocorre na simultaneidade das funções psíquicas (sobre essa simultaneidade é que se refere Kunz, quando fala da sincronização do sujeito).
Imagem corporal, autoconhecimento e conhecimento de si, são construídos na experiência vivida, na relação com o outro, na ação no mundo. Esses três aspectos do desenvolvimento humano participam da construção da consciência corpórea, que ocorre na medida em que há interação do sujeito com o meio, pelo movimento.
Em busca da compreensão “do si” e de uma consciência de mundo, via movimento, tem surgido diferentes maneiras de compreender as subjetividades e a construção do sujeito. Kunz (2001) discute os termos autoconhecimento e consciência de si, com muita propriedade e, em minha interpretação o primeiro é relativo ao domínio do próprio corpo, de como o corpo reage frente às estimulações sensitivas, o segundo está correlato com as interações do sujeito no mundo.
No autoconhecimento desenvolve-se a noção de coordenação entre as partes do corpo, e a percepção dessas partes: pernas, braços, tronco e como funcionam entre si, desenvolve-se os órgãos dos sentidos. No conhecimento de si, desenvolve-se a propriocepção, perceber com o corpo, sentir os sentidos e pensar sobre o próprio pensamento.  Esse é um processo de aprendizagem multidimensional e multidisciplinar.
Esse processo vislumbra o homem omnilateral, na perspectiva da integralidade. Para compreender a omnilateralidade deve-se recorrer aos estudiosos da área específica. Sendo assim,

Originalmente, o conceito foi mais bem explicitado por Kruspkaja – esposa de Lênin – que inspirara-se no conceito de omnilateralidade formulado e desenvolvido por Marx e que correspondia à concepção de que o ser humano deve ser integralmente desenvolvido em suas potencialidades, através de um processo educacional que levasse em consideração a formação científica, a política e a estética, com vista à libertação das pessoas, seja da ignomínia da pobreza, seja da estupidez da dominação (ROMÃO, 2007, p.1).


Compreendendo a omnilateralidade como o desenvolvimento de potencialidades do homem, para além das inatas, mas as produzidas por ele na vida social. Partir desse pressuposto é afirmar que é necessário criar condições para a produção humana, quer seja social, política ou educativa. Tais condições podem ser potencializadas na expressão da corporeidade, da consciência corporal pela motricidade, manifestação das vivências do sujeito.
O movimento humano, na visão do corpo substancial, é considerado deslocamento do corpo no espaço. Em contraste com o corpo substancial, o corpo relacional concebe o movimento na relação com o mundo, inerente ao corpo. Corpo e mundo não podem ser definidos independentemente um do outro. Há, sim, uma cadeia de relações intrínsecas – relações de significados.
            Significados atribuídos às vivências afetivas, cognitivas, sociais, culturais. Vivências que se entrelaçam e se organizam corporalmente, sendo expressas singularmente, e simultaneamente nas diferentes situações de vida. Portanto, o sujeito manifesta razão e emoção, porque não é corpo cindido, fracionado, partido, porque é ser uno na sua corporeidade e motricidade, na dimensão humana.
Há uma dimensão demens em todo ser humano, como diz Morin, em complementaridade a dimensão sapiens. Essas dimensões estão afeitas ao bios, o instintivo, emocional e ao logos, o racional. O desenvolvimento humano em sua complexa relação sócio-existencial só se realiza ao “aceitar a tensão dialógica, que mantém em permanência a complementaridade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade” (MORIN, 1999. p. 13).



[1] Texto produzido para o Ciclo de debates promovido pela a PROEX/UEPA em 21.06.2007.
[2] Para Manuel Sérgio Cunha o transcender é a passagem do ser para o devir, é conhecer-se em seus limites e possibilidades e a partir disso buscar a superação.
[3]              O lazer se caracteriza como possibilidade de organização social diferente do trabalho em que sujeitos optam por vivências lúdicas em tempo/espaço comuns. 
[4]              No processo educativo de Paulo Freire a codificação é a apreciação de um evento eleito no estudo da realidade vivida pelos sujeitos, por meio de uma dramatização, figura, fotografia ou desenho e a descodificação é a apreciação crítica dessa realidade.

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