TEXTO 3
A
CORPOREIDADE E AS DIMENSÕES HUMANAS[1]
Marta Genú. Drª. UEPA
A corporeidade é um
conceito e um fenômeno. Conceito porque traduz epistemologicamente o evento do
sujeito histórico. Fenômeno porque caracteriza a ação humana no contexto
social. Como fenômeno e evento social que o sujeito constrói na relação com o
meio em que vive, envolve as dimensões humanas. Os aspectos humanos
desenvolvidos durante o processo de maturação (biológico) e socialização
(cultura) constituem as dimensões humanas nomeadas como social, política,
emocional, biológica e cultural.
A relação estabelecida
entre a corporeidade e as expressões do sujeito implica em vivências no meio
sociocultural que resultam no desenvolvimento dos domínios do comportamento
referentes aos aspectos cognitivos e sócio-afetivos. A análise do fenômeno da
corporeidade perpassa pela compreensão de conceitos subjacentes, entre eles:
corpo, consciência corporal e omnilateralidade.
Há representações de corpo
nas diferentes culturas e momentos históricos. Da ação motora autômata e da
consciente, do corpo como instrumento de trabalho. Na antiguidade, os gregos
buscavam a harmonia entre corpo e mente com atividades artísticas e atléticas.
Com a Modernidade há um privilégio do reflexivo, e o ativo é tido como menos
importante. Portanto, há uma segmentação entre corpo e alma, o corpo é cindido.
Descartes radicalizou a
separação corpo e alma para livrar a ciência das amarras da igreja (ESPÍRITO
SANTO: 1998, p. 104). O dualismo cartesiano vem com uma intenção: se por um
lado o que é materializado pode ser comprovado, toda a realidade é explicável e
tem um funcionamento linear, mecânico, por outro lado o que abstrato, subjetivo
e relativo à alma cabe a igreja.
Como conseqüência desse
processo de modernização o homem é materializado em sua imagem, trato e
existência. A maquinização dos corpos é
superdimensionada pelo contexto social, pela indústria cultural e pela mercadorização
dos corpos, que industrializados se tornam corpo-objeto.
A Motricidade Humana
concebe o homem em todas as suas dimensões e na sua singularidade, e tem como
princípio o transcender[2]. O
que está embutido na nomenclatura é o movimento humano histórico, cultural, que
através da consciência corporal e do movimento intencional e não alienado,
constrói a análise, a crítica, a cidadania.
As
situações vivenciais, quando aprendizagem, constroem a corporeidade do sujeito.
Corporeidade é a história de vida, a experiência do corpo vivido expressa pela
motricidade, conjunto de ações intencionais ou motríceas e que se faz no ser
sendo, isto é, na medida em que se constrói história e cultura e dessa forma, o
sujeito se apropria da realidade, distanciando-se da objetificação de si, por
meio da consciência corporal.
A consciência corporal se traduz como o conjunto de manifestações corporais
estabelecidas entre os homens e o meio.
A
aprendizagem pela corporeidade possibilita a problematização da realidade a partir
do movimento e do corpo. Os conceitos (cultura, tempo, espaço, trabalho, lazer[3])
são trabalhados na descodificação[4]
(ARAGÃO, 2004, 2005; FREIRE, 1974, 1981) da realidade pelo corpo. O movimento é
o movimento do cotidiano que constrói conhecimento e consciência pela
apropriação da realidade, no processo da consciência corporal (MELO, 2005).
É na relação com o meio, e pelo
movimento intencional, que as estruturas psico-cognitivas fixam-se e liberam
outras. Nessa sucessão motrícea, o organismo se desenvolve. Então, a aquisição
da linguagem implica a maturação do sistema nervoso, a integração num grupo
social e a motivação afetiva. Como é próprio de todo sistema auto-organizativo,
a linguagem resultante de um amadurecimento cinestésico amplia, por sua vez, a
consciência.
A consciência é um campo psíquico que
reúne funções e que podem resultar em atos, se faz em atos de percepção,
imaginação, volição, especulação, paixão, com os quais dirigi-se para alguma
coisa, a consciência é consciência de
alguma coisa, visa algo e portanto é intencional. O processo de conscientização
se dá no espaço relacional e se constitui na ação sobre o meio.
A consciência corpórea,
como constituinte do processo de conscientização, portanto de construção de
identidade, contribui para o autoconhecimento e para a compreensão do sujeito
construído na interação, estabelecendo, via movimento experimentado/vivido,
correlações cognitivas. É no fluxo da ação-cognição que se dá à formação de
"corpo inteiro".
Isto, em decorrência da
impossibilidade de decompor uma percepção, fazendo dela uma reunião de partes
ou sensações (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 46), assim, a consciência corpórea se
constitui nesse fluir do sensitivo para o cognitivo em faces de um mesmo ato,
em vivências únicas. O processo perceptivo da consciência corpórea tem seu
correspondente na fase subjetiva da consciência.
A consciência corpórea também é a
percepção do entorno, da realidade, com a ajuda do corpo. “Perceber é tornar
presente qualquer coisa com a ajuda do corpo” (MERLEAU-PONTY apud MANUEL SÉRGIO
1994, p. 28), e com a ajuda da memória, evocando conceitos subsunçores (Um subsunçor é um conceito,
uma idéia, uma proposição já existente na estrutura cognitiva do aprendiz que
serve de ‘ancoradouro’ a uma nova informação, permitindo ao indivíduo
atribuir-lhe significado.)
para a compreensão e significação do que está sendo percebido.
Para além do domínio corporal, a
consciência corpórea é formada no domínio cognitivo, porque a percepção do
mundo ocorre pela sensibilidade, pelo campo do sentir, quando o sujeito
incorpora o que percebe e opera no campo cognitivo, desenvolvendo o processo de
conscientização também via consciência perceptiva ou corpórea. Trabalhar a
consciência sinaliza para a unicidade humana na dimensão ou no “double face”
corpo/mente.
Segundo Melo a noção de consciência
corpórea é complexa porque traz em si aspectos sociais, simbólicos e
cinestésicos. Melo propõe refletir sobre as relações estabelecidas entre a
existência corporal e o mundo, em que perpassam a aceitação própria do corpo a
partir das imagens impressas, nesse corpo, pela sociedade (GONZÁLEZ &
FENSTERSEIFER, 2005, p. 175).
Toda consciência é
corpórea, a consciência é a sincronização do sujeito (como diz Elenor Kunz).
Quando digo consciência corpórea, me refiro a “eu sou corpo”, portanto há um
processo de conscientização, via percepção corpórea, cognitiva, afetiva, que
ocorre na simultaneidade das funções psíquicas (sobre essa simultaneidade é que
se refere Kunz, quando fala da sincronização do sujeito).
Imagem corporal, autoconhecimento e
conhecimento de si, são construídos na experiência vivida, na relação com o
outro, na ação no mundo. Esses três aspectos do desenvolvimento humano
participam da construção da consciência corpórea, que ocorre na medida em que
há interação do sujeito com o meio, pelo movimento.
Em busca da compreensão
“do si” e de uma consciência de mundo, via movimento, tem surgido diferentes
maneiras de compreender as subjetividades e a construção do sujeito. Kunz
(2001) discute os termos autoconhecimento e consciência de si, com muita
propriedade e, em minha interpretação o primeiro é relativo ao domínio do
próprio corpo, de como o corpo reage frente às estimulações sensitivas, o
segundo está correlato com as interações do sujeito no mundo.
No autoconhecimento desenvolve-se a
noção de coordenação entre as partes do corpo, e a percepção dessas partes:
pernas, braços, tronco e como funcionam entre si, desenvolve-se os órgãos dos
sentidos. No conhecimento de si, desenvolve-se a propriocepção, perceber com o
corpo, sentir os sentidos e pensar sobre o próprio pensamento. Esse é um processo de aprendizagem
multidimensional e multidisciplinar.
Esse processo vislumbra o homem
omnilateral, na perspectiva da integralidade. Para compreender a omnilateralidade
deve-se recorrer aos estudiosos da área específica. Sendo assim,
Originalmente, o
conceito foi mais bem explicitado por Kruspkaja – esposa de Lênin – que
inspirara-se no conceito de omnilateralidade formulado e desenvolvido por Marx
e que correspondia à concepção de que o ser humano deve ser integralmente
desenvolvido em suas potencialidades, através de um processo educacional que
levasse em consideração a formação científica, a política e a estética, com
vista à libertação das pessoas, seja da ignomínia da pobreza, seja da estupidez
da dominação (ROMÃO, 2007, p.1).
Compreendendo
a omnilateralidade como o desenvolvimento de potencialidades do homem, para
além das inatas, mas as produzidas por ele na vida social. Partir desse
pressuposto é afirmar que é necessário criar condições para a produção humana,
quer seja social, política ou educativa. Tais condições podem ser
potencializadas na expressão da corporeidade, da consciência corporal pela
motricidade, manifestação das vivências do sujeito.
O
movimento humano, na visão do corpo substancial, é considerado deslocamento do
corpo no espaço. Em contraste com o corpo substancial, o corpo relacional
concebe o movimento na relação com o mundo, inerente ao corpo. Corpo e mundo não podem ser definidos
independentemente um do outro. Há, sim, uma cadeia de relações intrínsecas –
relações de significados.
Significados
atribuídos às vivências afetivas, cognitivas, sociais, culturais. Vivências que
se entrelaçam e se organizam corporalmente, sendo expressas singularmente, e
simultaneamente nas diferentes situações de vida. Portanto, o sujeito manifesta
razão e emoção, porque não é corpo cindido, fracionado, partido, porque é ser
uno na sua corporeidade e motricidade, na dimensão humana.
Há uma dimensão demens em todo ser
humano, como diz Morin, em complementaridade a dimensão sapiens. Essas
dimensões estão afeitas ao bios, o instintivo, emocional e ao logos, o
racional. O desenvolvimento humano em sua complexa relação sócio-existencial só
se realiza ao “aceitar a tensão dialógica, que mantém em permanência a
complementaridade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade”
(MORIN, 1999. p. 13).
[1] Texto
produzido para o Ciclo de debates promovido pela a PROEX/UEPA em 21.06.2007.
[2] Para
Manuel Sérgio Cunha o transcender é a passagem do ser para o devir, é
conhecer-se em seus limites e possibilidades e a partir disso buscar a
superação.
[3] O lazer se caracteriza como
possibilidade de organização social diferente do trabalho em que sujeitos optam
por vivências lúdicas em tempo/espaço comuns.
[4] No processo educativo de Paulo
Freire a codificação é a apreciação de um evento eleito no estudo da realidade
vivida pelos sujeitos, por meio de uma dramatização, figura, fotografia ou desenho
e a descodificação é a apreciação crítica dessa realidade.
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