POR CLARICE LISPECTOR
O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana. No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara e tenra de onde se poderia modelar um mundo.
Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade. Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.
Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.
Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo... de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.
Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores...Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!...
Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.
Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.
Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.
As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.
E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.
O texto acima foi publicado na revista "Nordeste" (Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE) e consta do romance "O Lustre", publicado em 1946. Foi extraído de reprodução feita pela Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, produção editorial de Giordanus - São Paulo, maio de 2003, sendo mais uma colaboração de João Antônio Bührer e seus "Arquivos Implacáveis".
Não há identificação do autor das ilustrações, que serão talvez de Ladjane que, com Esmaragdo Marroquim, assume a direção da revista. Declinam-se também M.Bandeira, José Cláudio e Karl Plattner como ilustradores do exemplar utilizado.
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