Um diálogo do
homem com a natureza esquecida
(Texto elaborado
por PaTTi Cruz)
O Bicho
Vi ontem um
bicho
Na imundície do
pátio
Catando comida
entre os detritos.
Quando achava
alguma coisa,
Não examinava
nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era
um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu
Deus, era um homem. (Manoel Bandeira)
Peço permissão a Bandeira para oferecer ao homem o próprio homem, a
partir da imagem que temos em seu poema. Pode parecer um tanto vil e agressivo
falar assim deste ser, mas, será que nossa crítica não se encontra, justamente
na veracidade do fato e por nos espelharmos nesta imagem que nos torna
selvagens?
Pensar na natureza e relembrar a flora e a fauna e sua forma de
sobrevivência onde alguns são levados a derrotar os outros apenas para se
manterem na cadeia vital, faz tudo parecer um ato cruel, doloroso demais para
ser visto. Mas, é tolerável a abundância
da escassez da vida que ajudamos a construir como futuro? Cada vez mais nos distanciamos da natureza
e passamos a ser representantes de uma
nova categoria de “selvagens”.
Nos distanciamos, quando não respeitamos seus elementos, não valorizamos
, não criamos meios para que sua escassez não aconteça. Quando contribuímos
para esvaziar nossos mares, rios, lagos. Quando poluímos o ar de forma a
vulnerabilizar nossa própria respiração. Quando contaminamos a água a ponto de
não podermos bebê-la diretamente sem passar por processos que alteram sua composição.
Quando do fogo surge, pela negligência humana e, de suas labaredas aparece a
figura destruidora, revidando por todos os atos anteriores cometidos e que,
portanto, transformam o clima, queimando lugares, onde existe o verde das
plantas.
Secretamente, vejo o homem se encaminhando ao poema de Manoel, porque
toma distancia da natureza a ponto suficiente para tornar-se selvagem. Vejo a
natureza se distanciando do homem, por não saber mais como conviver sem
sentir-se lesada pelas suas ações.
Ao pensar na terra, no solo, no barro, na mãe natureza, no chão que
sustenta, que torna possível a existência e permanência em um lar, casa sagrada
dentro do universo, encontro a possiblidade de um novo contato, de
redimensionar o entendimento de quem somos e resgatar um pouco de nossas raízes
e nossa humanidade. Pensar no barro como mediador, acolhedor é abrir um caminho
de acesso ao inconsciente coletivo, dialogando com outros mundos antes de nós,
criando um movimento que dignifique nossa estada no universo.
O barro contém em si todos os elementos da natureza, da força do fogo,
ao sopro de vida do ar, da água que oferece sua consistência à sensação de
estar novamente em contato com a mãe, em seu útero que protege, através dos
grãos da terra.
Terra, Água, Ar e Fogo não são conceitos
abstratos, são fatores materiais e forças vitais perceptíveis através dos
nossos sentidos. Como fatores materiais, simbolizam os quatro estados da
matéria. Segundo a física moderna, a terra é sólida, a água é líquida, o ar é
gasoso, e o fogo é plasma ou energia irradiante. Representam também as necessidades
fundamentais de qualquer organismo avançado. Esses elementos transcendem a mera
química material, são também forças vitais que atuam diretamente no homem. Eis
uma característica própria da cerâmica; o artista lida não somente com a
matéria nos seus diversos estados e nas suas transformações químicas mas, lida
também com energias vitais. (NAKANO, 1989, pp.67,69).
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a umidade que
unifica-nos com este recurso. Nossas mãos penetram na sua viscosidade e deste
interior modelam imagens, criam formas, nasce um novo personagem. O barro, o
elemento terra refere-se à matéria do corpo, à força física, a realidade do
aqui e agora do mundo material. Terra corresponde à função da Sensação. É a
lida com o mundo sensível e concreto, isto é, a reação ativa e resistente.
Nosso movimento com este elemento que compõe o barro pode nos oferecer a
reflexão a partir de suas características: esforço, paciência, obstinação,
prudência, rigidez, conservadorismo, concentração, concomitante a suas
características a serem trabalhadas também se fazem presentes: imposição de sua
razão, dúvida, negação, regras fixas, egoísmo, isolamento, lentidão.
É necessário acrescentar a humildade, etimologicamente ligada ao húmus,
em direção ao qual a terra se inclina e do qual foi modelado o homem.
A terra é a substância universal, o caos primordial, a prima matéria
separada das águas, segundo o Gênesis, levada à superfície das águas; coagulada
pelos heróis míticos; matéria de que o Criador molda o homem. A terra é a
virgem penetrada pela lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo
sangue, o sêmen do céu.
A terra simboliza a função maternal: Tellus Mater. Oferece e retira a
vida. Prostrando-se sobre o solo, Jó exclama: Nu saí do seio materno, nu para
lá retornarei, identificando a terra-mãe com o colo materno. ( Jean Chevalier e
Alain Gheerbrant, in Dicionário de Símbolos -Compilação de Constantino K.
Riemma)
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a vida que sopra e que
também unifica-nos com este recurso. A reflexão está presente, os pensamentos
fluem nas aragens e produzem as brisas que apresentam paisagens inimagináveis.
O ar tem como características a função mental, a atuação através da comparação.
Há neste elemento inteligência, reflexão, estudo, ciência, invenção; sutileza,
sinceridade, reforma. Corresponde à função do Pensamento. A vida emocional no
elemento Ar é a área mais vulnerável.
Ar produz, mobilidade, elasticidade de espírito, de caráter, impulsos
vivos, impressionabilidade, intuição, gênio inventivo, reação viva, habilidade,
sentimentos artísticos, liberalidade, sutileza, inquietação.
Positivamente o elemento tende ao equilíbrio, cooperação, espírito
gregário, inteligência, rapidez, objetividade, idéias balanceadas.
Negativamente: superficialidade, hiperatividade, nervosismo, dispersão.
O Ar é movimento e libertação.
Representa o mundo sutil intermediário do céu e da terra, o mundo da
expansão que é insuflado pelo sopro, necessário à subsistência dos seres.
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a generosidade da
vitalidade que escorre pelas gotas que brotam deste recurso aquoso enquanto
nossas mãos se conectam com sua plasticidade que transforma a forma e nos
modela como se o próprio barro fôssemos. Na água presente no barro levamos e
lavamos nossas emoções, purificamos os sentimentos, oferecemos forma ao que não
era visível. A água é o princípio calmante, curativo e nutritivo. Neste
elemento desenvolve-se psiquismo, vida emocional, sentimento, inspiração,
imaginação, desejos, regeneração. Tendências positivas e naturais do elemento
água (endo) quando em equilíbrio: compaixão, compreensão, sensibilidade, arte,
romantismo, reserva. Tendências negativas quando em desequilíbrio (caráter):
influenciabilidade, alucinações, auto-indulgência, fantasia, exagero dos
sentimentos. Carência, absorvência, emoções à flor da pele, mágoa.
“Em especial, a água é o elemento
mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assinala
tanta substância! Traz para si tantas essências! Recebe com igual facilidade as
matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos
os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da
dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química
que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a
química dos poetas.” [BACHELARD, 2002].
Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir o calor da vida, o
quente corpo que abraça nossa alma.
“O fogo surge como última etapa
do processo. Terminada a modelagem, ele é necessário para secar e endurecer o
barro, no sol ou no forno. Alquímico, vai transformar o que era mole e úmido em
duro e seco. Processo de transformação simbólica, já que o fogo é sinal de
modificação na essência. Todas as civilizações tiveram cerimônias ritualísticas
de transformação espiritual através do fogo.(ZALUAR, 1997, p.13).
O fogo é a vitalidade, atividade, demonstração, entusiasmo, vontade e o
idealismo. Energia excitável e entusiástica que, através de sua luz, dá
colorido ao mundo. Criatividade, iniciativa, liberdade, coragem e por vezes,
egocentrismo. Sua função é Intuitiva. Positivamente o elemento fogo produz:
coragem e auto-reconhecimento, visão, prestatividade, expressões criativas,
força, ardor, intuição. Negativamente: autoimposição, autoridade a qualquer
custo, dissipação da vitalidade. Em excesso: inquietação, egoísmo, crueldade,
desejos óbvios e imediatos, expectativas exageradas, impaciência. Pouco fogo: pessimismo,
comodismo, passividade, pouco movimento.
“Na poética do fogo o movimento
das forças é constante. Na lógica do tempo o fogo coexiste no ar, na terra, na
água que principia o conteúdo da vida. A energia é brutal e leve, infernal e
morna, aquece e acolhe os fluxos e desejos do sentindo puro da existência. Sob
a pena de alastrar-se, concentra-se. As fagulhas rasgam o espaço e iluminam o
todo. O fogo é a vida capturada em chamas, é a presença do sol nos braços das
labaredas que se estendem buscando tocar o espaço. É nesta dança sagrada e
alaranjada e na musicalidade do crepitar sereno das fagulhas que o universo
absorve o aspecto intuitivo e denso da sobrevivência.”
(PaTTi Cruz)
Portanto, creio que ao
tocar no barro nossas mãos nos tocam, profundamente, tocam o homem (ser humano)
que fomos e acende uma faísca brilhante do caminho para o qual podemos nos
direcionar ao encontro do homem que desejamos ser. Se nossa crença nos levar de volta ao caminho
de origem, quem sabe, possamos criar a passagem abaixo dos nossos pés, marcando
o solo com uma nova trajetória. Quem sabe, contatando com o barro, possamos
equilibrar os elementos dentro de nós e nos modelarmos a imagem e semelhança da
natureza que tão sábia oferece tudo que precisamos e que tão erroneamente não
conseguimos valorizar por que não vemos a abundância como algo a ser
preservado, vemos apenas, como algo a ser consumido e explorado. Não percebemos
que o que retiramos dela precisa ser recolocado, nutrido, para que novas vidas
possam, futuramente, usufruir com mais consciência do que nós hoje temos.
Jung escreve: “Nós não somos os criadores de nossas idéias, mas apenas
seus porta vozes; são elas que nos dão forma [...] cada um de nós carrega a
tocha que no fim do caminho outro levará”. (Jung apud
Gouveia, 1990, p.16).
Referencias
Bibliográficas
ALESSANDRINI, Cristina Dias. Análise Microgenética da Oficina Criativa –
Projeto de
Modelagem em Argila. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes
Editora, 1989.
GOUVÊA, Álvaro de Pinheiro. A Tridimensionalidade da Relação Analítica.
São Paulo; Editora Cultrix, 1999.
______________________. Sol da
Terra. O uso do Barro em psicoterapia.
São Paulo: Sumus Editorial, 1990.
JUNG, C. Gustav.A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.
_____________ .Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1962.
_____________.O Homem e seus Símbolos.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1964.
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