sábado, 1 de junho de 2013

Um diálogo do homem com a natureza esquecida

Um diálogo do homem com a natureza esquecida
(Texto elaborado por PaTTi Cruz)

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem. (Manoel Bandeira)

Peço permissão a Bandeira para oferecer ao homem o próprio homem, a partir da imagem que temos em seu poema. Pode parecer um tanto vil e agressivo falar assim deste ser, mas, será que nossa crítica não se encontra, justamente na veracidade do fato e por nos espelharmos nesta imagem que nos torna selvagens?
Pensar na natureza e relembrar a flora e a fauna e sua forma de sobrevivência onde alguns são levados a derrotar os outros apenas para se manterem na cadeia vital, faz tudo parecer um ato cruel, doloroso demais para ser visto. Mas, é tolerável a abundância da escassez da vida que ajudamos a construir como futuro?  Cada vez mais nos distanciamos da natureza e  passamos a ser representantes de uma nova categoria de “selvagens”.
Nos distanciamos, quando não respeitamos seus elementos, não valorizamos , não criamos meios para que sua escassez não aconteça. Quando contribuímos para esvaziar nossos mares, rios, lagos. Quando poluímos o ar de forma a vulnerabilizar nossa própria respiração. Quando contaminamos a água a ponto de não podermos bebê-la diretamente sem passar por processos que alteram sua composição. Quando do fogo surge, pela negligência humana e, de suas labaredas aparece a figura destruidora, revidando por todos os atos anteriores cometidos e que, portanto, transformam o clima, queimando lugares, onde existe o verde das plantas.
Secretamente, vejo o homem se encaminhando ao poema de Manoel, porque toma distancia da natureza a ponto suficiente para tornar-se selvagem. Vejo a natureza se distanciando do homem, por não saber mais como conviver sem sentir-se lesada pelas suas ações.

Ao pensar na terra, no solo, no barro, na mãe natureza, no chão que sustenta, que torna possível a existência e permanência em um lar, casa sagrada dentro do universo, encontro a possiblidade de um novo contato, de redimensionar o entendimento de quem somos e resgatar um pouco de nossas raízes e nossa humanidade. Pensar no barro como mediador, acolhedor é abrir um caminho de acesso ao inconsciente coletivo, dialogando com outros mundos antes de nós, criando um movimento que dignifique nossa estada no universo.
O barro contém em si todos os elementos da natureza, da força do fogo, ao sopro de vida do ar, da água que oferece sua consistência à sensação de estar novamente em contato com a mãe, em seu útero que protege, através dos grãos da terra.

 Terra, Água, Ar e Fogo não são conceitos abstratos, são fatores materiais e forças vitais perceptíveis através dos nossos sentidos. Como fatores materiais, simbolizam os quatro estados da matéria. Segundo a física moderna, a terra é sólida, a água é líquida, o ar é gasoso, e o fogo é plasma ou energia irradiante. Representam também as necessidades fundamentais de qualquer organismo avançado. Esses elementos transcendem a mera química material, são também forças vitais que atuam diretamente no homem. Eis uma característica própria da cerâmica; o artista lida não somente com a matéria nos seus diversos estados e nas suas transformações químicas mas, lida também com energias vitais. (NAKANO, 1989, pp.67,69).


Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a umidade que unifica-nos com este recurso. Nossas mãos penetram na sua viscosidade e deste interior modelam imagens, criam formas, nasce um novo personagem. O barro, o elemento terra refere-se à matéria do corpo, à força física, a realidade do aqui e agora do mundo material. Terra corresponde à função da Sensação. É a lida com o mundo sensível e concreto, isto é, a reação ativa e resistente. Nosso movimento com este elemento que compõe o barro pode nos oferecer a reflexão a partir de suas características: esforço, paciência, obstinação, prudência, rigidez, conservadorismo, concentração, concomitante a suas características a serem trabalhadas também se fazem presentes: imposição de sua razão, dúvida, negação, regras fixas, egoísmo, isolamento, lentidão.
É necessário acrescentar a humildade, etimologicamente ligada ao húmus, em direção ao qual a terra se inclina e do qual foi modelado o homem.
A terra é a substância universal, o caos primordial, a prima matéria separada das águas, segundo o Gênesis, levada à superfície das águas; coagulada pelos heróis míticos; matéria de que o Criador molda o homem. A terra é a virgem penetrada pela lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu.
A terra simboliza a função maternal: Tellus Mater. Oferece e retira a vida. Prostrando-se sobre o solo, Jó exclama: Nu saí do seio materno, nu para lá retornarei, identificando a terra-mãe com o colo materno. ( Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, in Dicionário de Símbolos -Compilação de Constantino K. Riemma)

Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a vida que sopra e que também unifica-nos com este recurso. A reflexão está presente, os pensamentos fluem nas aragens e produzem as brisas que apresentam paisagens inimagináveis. O ar tem como características a função mental, a atuação através da comparação. Há neste elemento inteligência, reflexão, estudo, ciência, invenção; sutileza, sinceridade, reforma. Corresponde à função do Pensamento. A vida emocional no elemento Ar é a área mais vulnerável.
Ar produz, mobilidade, elasticidade de espírito, de caráter, impulsos vivos, impressionabilidade, intuição, gênio inventivo, reação viva, habilidade, sentimentos artísticos, liberalidade, sutileza, inquietação.
Positivamente o elemento tende ao equilíbrio, cooperação, espírito gregário, inteligência, rapidez, objetividade, idéias balanceadas. Negativamente: superficialidade, hiperatividade, nervosismo, dispersão.
O Ar é movimento e libertação.  Representa o mundo sutil intermediário do céu e da terra, o mundo da expansão que é insuflado pelo sopro, necessário à subsistência dos seres.

Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir a generosidade da vitalidade que escorre pelas gotas que brotam deste recurso aquoso enquanto nossas mãos se conectam com sua plasticidade que transforma a forma e nos modela como se o próprio barro fôssemos. Na água presente no barro levamos e lavamos nossas emoções, purificamos os sentimentos, oferecemos forma ao que não era visível. A água é o princípio calmante, curativo e nutritivo. Neste elemento desenvolve-se psiquismo, vida emocional, sentimento, inspiração, imaginação, desejos, regeneração. Tendências positivas e naturais do elemento água (endo) quando em equilíbrio: compaixão, compreensão, sensibilidade, arte, romantismo, reserva. Tendências negativas quando em desequilíbrio (caráter): influenciabilidade, alucinações, auto-indulgência, fantasia, exagero dos sentimentos. Carência, absorvência, emoções à flor da pele, mágoa.

“Em especial, a água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assinala tanta substância! Traz para si tantas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a química dos poetas.” [BACHELARD, 2002].

Ao contatar com o barro nossas mãos buscam sentir o calor da vida, o quente corpo que abraça nossa alma.

“O fogo surge como última etapa do processo. Terminada a modelagem, ele é necessário para secar e endurecer o barro, no sol ou no forno. Alquímico, vai transformar o que era mole e úmido em duro e seco. Processo de transformação simbólica, já que o fogo é sinal de modificação na essência. Todas as civilizações tiveram cerimônias ritualísticas de transformação espiritual através do fogo.(ZALUAR, 1997, p.13).


O fogo é a vitalidade, atividade, demonstração, entusiasmo, vontade e o idealismo. Energia excitável e entusiástica que, através de sua luz, dá colorido ao mundo. Criatividade, iniciativa, liberdade, coragem e por vezes, egocentrismo. Sua função é Intuitiva. Positivamente o elemento fogo produz: coragem e auto-reconhecimento, visão, prestatividade, expressões criativas, força, ardor, intuição. Negativamente: autoimposição, autoridade a qualquer custo, dissipação da vitalidade. Em excesso: inquietação, egoísmo, crueldade, desejos óbvios e imediatos, expectativas exageradas, impaciência. Pouco fogo: pessimismo, comodismo, passividade, pouco movimento.

“Na poética do fogo o movimento das forças é constante. Na lógica do tempo o fogo coexiste no ar, na terra, na água que principia o conteúdo da vida. A energia é brutal e leve, infernal e morna, aquece e acolhe os fluxos e desejos do sentindo puro da existência. Sob a pena de alastrar-se, concentra-se. As fagulhas rasgam o espaço e iluminam o todo. O fogo é a vida capturada em chamas, é a presença do sol nos braços das labaredas que se estendem buscando tocar o espaço. É nesta dança sagrada e alaranjada e na musicalidade do crepitar sereno das fagulhas que o universo absorve o aspecto intuitivo e denso da sobrevivência.”
(PaTTi Cruz)


            Portanto, creio que ao tocar no barro nossas mãos nos tocam, profundamente, tocam o homem (ser humano) que fomos e acende uma faísca brilhante do caminho para o qual podemos nos direcionar ao encontro do homem que desejamos ser.  Se nossa crença nos levar de volta ao caminho de origem, quem sabe, possamos criar a passagem abaixo dos nossos pés, marcando o solo com uma nova trajetória. Quem sabe, contatando com o barro, possamos equilibrar os elementos dentro de nós e nos modelarmos a imagem e semelhança da natureza que tão sábia oferece tudo que precisamos e que tão erroneamente não conseguimos valorizar por que não vemos a abundância como algo a ser preservado, vemos apenas, como algo a ser consumido e explorado. Não percebemos que o que retiramos dela precisa ser recolocado, nutrido, para que novas vidas possam, futuramente, usufruir com mais consciência do que nós hoje temos.
                                                                                               
Jung escreve: “Nós não somos os criadores de nossas idéias, mas apenas seus porta vozes; são elas que nos dão forma [...] cada um de nós carrega a tocha que no fim do caminho outro levará”. (Jung apud Gouveia, 1990, p.16).




Referencias Bibliográficas

ALESSANDRINI, Cristina Dias. Análise Microgenética da Oficina Criativa – Projeto de
Modelagem em Argila. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1989.

GOUVÊA, Álvaro de Pinheiro. A Tridimensionalidade da Relação Analítica.
São Paulo; Editora Cultrix, 1999.

______________________.  Sol da Terra. O uso do Barro em psicoterapia.
São Paulo: Sumus Editorial, 1990.

JUNG, C. Gustav.A Dinâmica do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1984.

_____________ .Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1962.


_____________.O Homem e seus Símbolos.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

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